quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Profundo e atemporal


Ontem, no ponto de ônibus, havia um senhor que aparentava ter uns 80 anos de idade. Ele tinha os cabelos bem alvos, até as sobrancelhas eram branquinhas e eu olhei feito criança curiosa. Orelhas e nariz grandes - ouvi dizer que essas partes do corpo não param de crescer. Os olhos caídos aparentavam a tristeza de quem já viveu demais, e ainda há o que viver! As rugas estavam por todo o rosto, marcas que a vida trouxe pra dizer que o tempo passa, passa e nos leva a juventude. Mas, veja pelo lado bom, nos traz a experiência e sabedoria em meio aos calos de quem já andou um bocado até aqui. O corpo daquele senhor era franzino, flácido, uma barriga enorme e um andar vagaroso de quem não tem pressa alguma, a vida por si só já passa mais rápido do que os olhos conseguem acompanhar. 

Me peguei tentando imaginar aquele senhor quando ainda era jovem, comecei a fantasiar a vida dele inteira. Achei que ele tinha cara de "seu Domingos" e fui chamando-o assim o caminho inteiro (em meu pensamento, é claro). Sempre fui meio maluca. Tentei prever se ele teve muitos sonhos, se saía aos fins de semana, se teve muitas namoradas. Tentei adivinhar qual ônibus ele estava esperando, se ele tinha muitos netos, se ele tinha uma senhora simpática esperando por ele em alguma varanda. E foi aí que eu pensei em algo que realmente me fez escrever esse texto. Me imaginei amando um velhinho como ele e, acreditem, o olhava procurando motivos para amá-lo. Motivos. Como os meus olhos poderiam capturar motivos? Os motivos não são expelidos pelos poros, continuei pensando.

Quando a gente é jovem e sonha em encontrar um cara lindo, da pele macia, músculos definidos, cabelos bem cuidados, com uma pegada boa, a gente em algum momento pensa no tempo que não para? Quero dizer, a gente imagina que tudo isso vai virar lembrança e que a gravidade modifica nossa aparência? Imaginei aquele senhor, e sua respectiva senhora, olhando um pro outro e ainda percebendo através dos olhos o amor de antes. Alguém já disse que os olhos são a janela da alma, e é por meio disso que as pessoas se reconhecem mesmo com o passar nos anos. Mas, e se a gente ama só o que vê? E se a gente ama o corpo de alguém? E se a gente ama o que nossas mãos conseguem tocar? 

Amar com os olhos, com o corpo, com as sensações que o outro provoca, talvez não seja amor completo. E se não há plenitude, não há amor. O incompleto não basta, não faz música, não aquece. Já tentei algumas vezes, mas nunca consegui me imaginar velhinha, com cabelos brancos e rugas (só sei que quero ter saúde quando esse tempo chegar). Agora, depois de olhar o "seu Domingos" no ponto de ônibus, tento imaginar como será o meu -quem sabe- amor. Eu vou olhar pras rugas e procurar o mocinho de anos atrás? Eu vou olhar pros cabelos brancos e desejar a cor novamente? Por uns instantes eu duvidei da constância do sentimento. Então eu finalmente cheguei em casa com a sensação de que o amor é atemporal. Tive a certeza de que o motivo daquela senhora esperar aquele senhor com um sorriso no rosto, mesmo que os olhos já não mostrem uma beleza jovial, é que ela o amou por dentro. E os olhos não podem enganar a alma. Comecei a pensar que eles (o ilustre casal desconhecido que deu origem a esse texto) estão fisicamente mudados, mas ainda se reconhecem profundamente, como se estivessem enraizados um no outro. 

Eles se amaram por dentro, continuei pensando. O amor não é cego, ele só nos faz ver por dentro. Quando o amor escorre na pele, é porque já cresceu e tomou conta da alma inteira. Quando o amor não está preso aos olhos, consegue resistir ao tempo e ser como deve ser: profundo e atemporal.